A obra de arte na era dos NFT’s: manutenção ou ruptura?
Publicado em 10/06/2022Artigo originalmente publicado no site Baixa Cultura em 23 de abril de 2021.
“Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro”.
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin. 1936)
Quando Benjamin escreveu o famoso ensaio citado acima, a arte era impactada pela revolução do cinema e da fotografia e toda a possibilidade de reprodução que estes suportes traziam, que “liberariam o objeto reproduzido do domínio da tradição e, ao multiplicar o reproduzido, colocariam no lugar da ocorrência única a ocorrência em massa”. É então que surge o conceito de aura, uma materialidade temporal do aqui e agora, que segundo o autor é o que constitui a autenticidade da obra de arte. Quando ocorre a reprodução técnica da obra de arte, perde-se sua aura. A aura só existe quando a obra de arte é única.
Como veríamos algumas décadas depois, a reprodução passaria a ser o habitual nas novas formas de expressão artística e cultural a partir do surgimento de tecnologias eletrônicas, depois digitais e, finalmente, digitais em rede. A ponto do próprio artigo de Benjamin se tornar, provavelmente, o mais conhecido de sua extensa obra – certamente o mais copiado e citado.
Mas por que estamos falando dele quase 85 anos depois, no segundo ano de distopia pandêmica? Se agora as relações sociais se dão essencialmente de forma virtual, também os arquivos digitais exclusivos passaram a ser negociados com cifras milionárias através de uma moeda impalpável. Como isso é possível?
Bem-vindxs aos NFTs
NFT é a sigla de non-fungible token, em português, token não fungível. Eles começaram a aparecer em 2017 com os CryptoKitties, gatinhos fofos criptografados e colecionáveis (foto acima). Operam através de blockchain, principalmente através da plataforma Ethereum, com uma criptomoeda própria, o Ether. NFT´s possuem um código que identificam um arquivo, uma espécie de certificado digital baseado em blockchain, um pedaço de código de software com funcionalidade específica e identificado através de um identificador exclusivo – essencialmente uma longa sequência de números e letras aleatórias conhecida como “hash”. A cadeia de blockchain, a grosso modo, funciona como um registro público de um cartório onde você pode verificar a autenticidade. Através desse mecanismo, é possível trazer um aspecto de singularidade e exclusividade a absolutamente qualquer coisa que a imaginação humana puder alcançar.
Daí vem os NFTs. Esses pedaços de dados digitais (Tokens Não Fungíveis) têm sido frequentemente usados em coleções e áreas para se conseguir uma propriedade digital certificada. E essa criptografia pode ser encontrada em obras de arte, coleções digitais e itens digitais para jogos online. Mas podem ser aplicadas nos mais variados objetos de desejo humano, e isso inclui desde memes de gatinho, um cartão de basquete com uma enterrada do Lebron James a alianças de casamento.
Como disseram Gabriel Menotti & Fernando Velázquez na Zum:
“O que o colecionador obtém na compra de um NFT é apenas o certificado de autenticidade e não a obra em si. Ao contrário do que possa parecer, a obra não está gravada na blockchain. O NFT não é um arquivo de mídia, mas um conjunto de metadados (uma etiqueta) que aponta para esse arquivo armazenado em algum canto da Internet. Por si só, essa mudança não elimina intermediários nem leva a um mercado de arte mais transparente ou confiável. Desprovida de componentes legais, a posse do NFT não garante direitos de reprodução ou exibição. Na verdade, não garante nem mesmo a própria exclusividade, uma vez que o artista sempre pode criar outro NFT apontando para o mesmo arquivo ou para outra versão dele. Para complicar ainda mais, os termos de uso da maioria dos marketplaces os exime de qualquer responsabilidade prévia sobre a integridade dos dados que armazenam, abrindo caminho para fraudes, roubos e trollagens. Eles não asseguram sequer o pleno funcionamento dos contratos inteligentes que deveriam automatizar o repasse de royalties de revenda para os autores”.
“Everydays – The First 5000 Days”, Beeple
O assunto rendeu atenção principalmente depois que a obra “Everydays – The First 5000 Days”, uma colagem digital do artista Mike Winkelmann, mais conhecido como Beeple, foi leiloada pela tradicional casa de leilão britânica Christies e vendido por $69 milhões; e é o NFT mais caro já vendido até o momento. A venda coloca Beeple entre os três artistas vivos com obras mais caras, depois de Jeff Koons e David Hockney. MetaKovan, o pseudônimo fundador da MetaPurse, é o comprador por trás do lance vencedor de $69 milhões. Mas não sabemos ao certo sua identidade, afinal o anonimato é uma possibilidade e atributo de redes descentralizadas.
A obra consiste de 5000 imagens feitas uma a cada dia ao longo de 13 anos – cada uma das imagens que compõem a obra está licenciada em Creative Commons, aliás. A popularidade on-line de Beeple e sua produção livre e contínua certamente contribuíram para o preço altíssimo, mas um fator determinante foi a popularidade crescente em torno dos NFTs.
Depois da venda da obra de Beeple, todo um ecossistema emergiu em torno dos NFT´s de arte, com guias de “como entrar na onda e ganhar seu primeiro milhão” a uma explosão de diversos marketplaces para negociação. Essa explosão também foi impulsionada pelo forte incentivo a criação de modelos de negócios baseados em Ethereum, os Dapps, que são ferramentas e serviços movidos através dessa rede.
Direito de Sequência
Uma vantagem aos criadores que utilizam NFT´s é que a interface padrão dos tokens permite aos criadores de arte receber uma taxa não apenas quando suas obras são vendidas pela primeira vez, mas também quando são revendidas. Na prática, é ver o renegado direito de sequência se materializar, que embora com previsão legal em diversas legislações de direitos autorais, é peça rara de existir no mundo físico. O direito de sequência é, no Direito, o que garante ao autor, e seus herdeiros, o direito de receber uma participação sobre a revenda de uma obra de arte original – no Brasil, este percentual é de 5% sobre o lucro verificável da obra.
Questões ambientais e éticas
Os NFT´s vem colecionando um emaranhado de críticas à sua utilização, em razão do exorbitante consumo energético e emissões de carbono nada sustentáveis. O site http://cryptoart.wtf estima as emissões de carbono analisando o resultado de transações baseadas em blockchain (especificamente Proof-of-Work, Ethereum) relacionadas aos NFT’S de arte. Um site que leva 10 segundos para emitir um NFT pode gastar cerca de 8,7 megawatts de energia, o que equivale ao gasto médio de uma família durante um ano inteiro.
As críticas se estendem também aos artistas que fazem a escolha de lançar suas criações com NFT, como Gorillaz e a cantora Grimes – esta, depois de muitas críticas, destinou parte do dinheiro a uma ONG focada em reduzir as emissões de CO2.
“Gods in Hi-Res”, arte digital em NFT criada por Grimes.
Falsa escassez e propriedade de ativos digitais
O que conduz o valor de um ativo em NFT é o argumento da exclusividade e sua importância na determinação do valor de um ativo. Mas os NFT´s se sustentam através da lógica de uma falsa escassez. Afinal, o fato de eu possuir um arquivo digital não quer dizer que você não possa possuir também. O código criptografado traz a ficção de uma exclusividade numa tentativa de se colocar uma aura (olhaí o profético Benjamin) artificial no arquivo digital.
Com NFT´s não é apenas o artista ou vendedor original que pode ter uma cópia do ativo digital: qualquer pessoa poder fazer uma captura de tela ou mesmo uma cópia (como é o caso da que fizemos acima de “Everydays”). A maioria dos NFTs é exibida ao público nas plataformas de vendas, como as já citadas acima. O que garante a propriedade e a exclusividade é somente uma codificação.
Sabemos que os seres humanos têm uma série de motivações intrínsecas para valorizar e colecionar uma ampla gama de artefatos físicos, que vão desde cartinhas de Pokémon à obras de arte clássicas. O chamado “mundo da arte”, onde obras renascentistas e bananas com silvertape são vendidas a preços semelhantes, é o lugar onde a natureza subjetiva do valor é construída sob evidentes fatores abstratos. Porém, nada chega perto da abstração dos NFT´s: memes do começo do século, tweets de famosos e arte pixelada de estética duvidosa alcançam cifras inimagináveis.
Inimagináveis e também distante dos conceitos de Benjamin do mesmo artigo, “valor de culto” e “valor de exposição”, que estão presentes em uma obra de arte tradicional. Normalmente, adquirimos uma obra de arte por motivações ritualísticas ou porque simplesmente desejamos pendurá-la em uma parede para nos exibirmos aos nossos amigos – o que não dá pra fazer com uma arte em NFT. Mas e o que mesmo podemos fazer com uma arte em NFT? Colocar como plano de fundo do celular?
O “valor de exposição” para NFT’s não é tão simples assim.
Especulação e lavagem de dinheiro
As criptomoedas nascem de um ideal de descentralização e autonomia, com a total ausência de controle de bancos ou estados. Porém, o que aparentemente parece ser uma vantagem, tem acabado por repetir a lógica de controle e dominação como em qualquer outra moeda de mercado. Assim, seguem sendo suscetíveis a variáveis de poder bem mais improváveis, como um tweet do Elon Musk, que faz despencar ou disparar a sua cotação.
Importante destacar as bases que sustentam essas negociações para entender sua lógica.
A lógica dos NFTs começa da seguinte maneira: colecionadores começam a acumular esses bens digitais a preços relativamente baixos. Grupos de colecionadores então formam outros grupos sociais diversos que, então, negociam e trocam ativos dessas coleções com base no apelo estético ou qualquer outro fenômeno social, com a finalidade, muitas vezes, de aumentar seu valor artificialmente através de transações fictícias. A dimensão especulativa só aparece quando essas coleções pré-existentes estão sujeitas a novas ondas de capital que formam mudanças significativas na valorização dos preços. Como o que ocorreu com a venda da obra do Beeple, onde vimos disparar o mercado de NFT´s de arte.
O imaginário especulativo financeiro está sendo atraído por uma corrida para adquirir NFTs, cujo conceito de valor e presunção de valor são absolutamente abstratos. A tecnologia aqui utilizada projeta um futuro nada diferente das condições econômicas e culturais do presente ou do passado, onde os deuses do mercado – e aqui no caso se incluem artistas e criativos – comandam seu poder de especulação sobre as massas.
O frenesi em torno dos NFTs e a corrida maluca para criar e possuir ativos únicos que acumularão um capital futuro é a receita exata para uma continuidade de desigualdades com a falsa promessa de democracia e reconhecimento.
Benjamin falava que uma nova forma de mídia tem o potencial para transformar as relações sociais. Termina sua análise com um prognóstico, a conclusão de que a reprodução técnica seria “mais uma aplicação reacionária”. O que se poderia esperar da expansão das tecnologias de reprodução técnica, na época, seria então não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para a sua própria supressão. É cedo ainda para dizer, mas, ao que tudo indica, as NFTs da arte vão nessa mesma linha: acabam por reproduzir e potencializar as mesmas velhas hierarquias baseadas em modelos anteriores de desigualdade e dominação.
A combinação dos NFT´s com a especulação de valor e o culto a artistas, celebridades e bilionários nerds não são um bom cenário de uma promessa democrática e pós-capitalista do blockchain, algo que teria a possibilidade e infraestrutura para um mundo sustentável, como alguns já apontaram.
Mas o que há de errado em ganhar dinheiro e hypar artistas e colecionadores a um patamar muito acima da média da população? Um meio econômico programável e descentralizado poderia, em princípio, pelo menos ter a capacidade de democratizar receitas e criar um modelo econômico horizontal de uma possibilidade de extensão nunca antes vista.
Aprendemos, com a ressaca da internet, que hoje esse desenho (especulação + desregulação + performance) tem se encaixado mais em uma tradição antidemocrática que ameaça obscurecer valores compartilhados de humanidade, que aqui acabam ofuscados pelo ideal de uma performance estética e criação irreal de valor. Os NFTs, podemos dizer, não são ruptura, mas manutenção; seguimos iludidos pelo espetáculo e não se importando em questionar as bases em que essa tecnologia se desenvolve.
[Nanashara Piazentin é advogada, mestranda em Propriedade Intelectual, coordenadora de cultura livre do Creative Commons Brasil.]